Quando olhamos para os fatos históricos, não podemos deixar de reconhecer que o fazemos sempre do lugar social em que estamos inseridos. O meu lugar social são os pobres do Rio Grande com os seus Movimentos Populares. E é deste lugar que olho para os primórdios destas terras em que nasci e para o seu povo de raiz que são os índios, particularmente os guaranis, organizados e evangelizados pelas Missões dos Jesuítas. Padres e índios fizeram o contraponto espiritual, humanista e cívico às conquistas da terra pelos impérios militares de Espanha e Portugal.
Faço a seguir uma rápida síntese desse meu olhar sobre a figura de Sepé como herói e como santo canonizado pelo povo. O escritor Manoelito de Ornelas, na introdução ao seu livro “Tiaraju”, refere que todos os povos da terra deram asas à imaginação para criar um símbolo que lhes proporcionasse sentido e permanência na geografia do mundo e nos milênios da história.
Exemplifica Manoelito com os gregos que, por meio de Homero, nos livros Ilíada e Odiséia, criaram o mito da epopéia de Ulisses, o herói de Tróia. Depois os romanos, que criaram o mito de Rômulo. Em criança, foi amamentado por uma loba e, como primeiro rei de Roma, organizou o rapto das sabinas a fim de que dessem descendência a toda a população do Lácio. Invoca depois o mesmo escritor, na França, o rei Carlos Martel; na Espanha, o Cid Campeador, passando também em revista os principais povos do Oriente com seus respectivos mitos.
Com base nos mitos e epopéias históricas fundantes, Manoelito de Ornelas divide os povos do universo entre aqueles que criaram um mito inicial, como instrumento para dar origem à sua história, e um segundo grupo de povos, que tiveram um feito histórico em sua origem, tão saliente, que transformaram essa história em mito. Pertenceríamos nós, o povo do Rio Grande, a este segundo grupo. Tivemos aqui os índios guaranis com suas Missões Jesuíticas, em cujo ventre foi gerado o personagem Sepé Tiaraju, que é um fato histórico inconteste e de suma grandeza.
Aqui por estas terras, o fato histórico fundante, foi transformado em mito, enquanto aqueles povos mais antigos transformaram o mito em história. Dentro dessa premissa, não deveria eu rejeitar o argumento, que encontrei pelo caminho, quando historiadores tentaram me convencer da inutilidade de querer a canonização oficial do mártir Sepé Tiaraju, já popularmente declarada? Assim me falaram: “Você está querendo canonizar um mito! Você quer canonizar apenas uma bandeira!” O personagem Sepé, me afirmaram esses historiadores, é infinitamente menor do que o mito Sepé.
Quando no Rio Grande do Sul, na esteira da Igreja oficial que, em Medellín (Colômbia), no ano de 1968, oficializou sua opção preferencial pelos pobres, começamos a ler a nossa história pelo avesso, isto é, a partir dos vencidos – sempre os pobres – como os índios de hoje e todos os maltrapilhos à beira de estradas e nas periferias das grandes cidades.
Nas Missões Jesuíticas dos primórdios do Rio Grande, com os Sete Povos e na figura central, polarizadora de todo esse trabalho missioneiro que foi Sepé Tiaraju, canonizado por índios e pelo povo riograndense, vimos nessa epopéia histórica a profecia e a utopia capazes de o destino histórico de nossa terra e de nossas gentes.
Nossas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), inspiradoras de nossa Teologia da Libertação, ao lado de não poucos Movimentos Populares, beberam, nos inícios da década de 1970, da pipa de vinho místico produzido nos parreirais espirituais cultivados pelos índios missioneiros personificados na figura carismática de Sepé e seus 1.500 companheiros mártires do Caiboaté.
Fomos a São Gabriel, no dia 7 de fevereiro de 1978, nos lugares sagrados em que o sangue foi derramado, para a abertura do Ano de Todos os Mártires Indígenas da América Latina. Nesse dia, realizamos a primeira Romaria da Terra do Brasil. Fomos de novo em São Gabriel nos dois anos seguintes, 1979 e 1980, para a segunda e terceira Romarias da Terra e também para o primeiro e o segundo Encontros Intereclesiais de Comunidades de Base, que tivemos o cuidado de marcar, nos dois anos, nos dias 6, 7 e 8 de setembro, em torno do dia comemorativo da independência do Brasil. Fomos sempre para nos impregnar do sangue de Sepé e dos companheiros mártires missioneiros, a fim de adquirir forças para as lutas com que sonhávamos.
Descobrimos, desde os lugares sagrados de nossos mártires, que o verdadeiro grito de liberdade foi o de Sepé: “Esta terra tem dono!”. Esse “brado retumbante” foi sufocado, à semelhança do grito do Nazareno na cruz, por um mar de sangue. Sepé lutava ao mesmo tempo contra Espanha e Portugal, as duas potências militares opressoras dos guaranis dos Sete Povos, que, na ocasião, representavam todos os povos nativos do continente americano. Sepé sabia, ao partir da cidade de São Miguel, da qual era prefeito, que partiria para o holocausto. “Ou ficar a pátria dos Sete Povos livre, ou morrer pela nação guarani”.
Em nossa reflexão, aquilo que aconteceu no dia 7 de setembro de 1822, “nas margens plácidas do Ipiranga”, em São Paulo, reduziu-se a um simples gritinho que provocou a repartição da herança no império português. Portugal continuaria como terra do rei-pai e o Brasil, como terra do império do rei-filho.
Foi bebendo dessa fonte de águas puras das Missões Jesuíticas, polarizadas em torno da figura do mártir Sepé, que as CEBs de Ronda Alta, emblematicamente, no dia 7 de setembro de 1979, comemorativo da Independência do Brasil, deixaram o recinto do Colégio Marista de São Gabriel, onde acontecia o 1º Encontro Estadual, para abraçar os companheiros que acabavam de ocupar a fazenda Macáli. As CEBs de Ronda Alta haviam parido o MST com essa primeira conquista de terra. Seguiu-se, pouco tempo depois, a ocupação da Fazenda Brilhante. Na Encruzilhada Natalino, as mesmas CEBs derrotaram simbolicamente as forças militares da ditadura, comandadas pelo coronel Curió. Estava aberto o caminho do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) rumo à grande Reforma Agrária no latifúndio Brasil.
O MST ficou debaixo das asas protetoras das Comunidades de Base até o ano de 1984 quando, em encontro memorável, se tornou um movimento autônomo.
Os membros do MST se designaram a si mesmos, no Rio Grande do Sul, como os Filhos de Sepé, nome com que batizaram o seu maior assentamento, localizado no município de Viamão.
As Missões Jesuíticas e São Sepé são ao mesmo tempo nossa utopia e nossa profecia.
Utopia porque a Igreja da Libertação do Rio Grande retomou, através das CEBs, o projeto político-religioso exemplarmente solidário com o oitavo povo das Missões, como escreve Alcy Cheuiche. A utopia inventada pelos missioneiros na aurora de nosso Rio Grande continua viva e está sempre presente no horizonte de nossa caminhada. O princípio fundamental dessa utopia concreta é: “De cada um de acordo com suas possibilidades, para cada um de acordo com suas necessidades”.
É também profecia porque denunciamos e anunciamos ao mesmo tempo.
Como os guaranis das Missões, denunciamos todos os sistemas opressores e excludentes do mundo. Anunciamos que não somente um mundo diferente é possível, mas que esse mundo novo já foi concretizado aqui em nosso Rio Grande, durante 150 anos de Sete Povos.
Então aqui a minha pergunta: por que essa maravilha histórica fundante do Rio Grande do Sul, nosso autêntico fogo de chão, continua debaixo das cinzas até hoje? Quais as causas desse equívoco histórico?
O que devemos fazer para que esse fogo de chão missioneiro saia do chão em que ainda está, submerso pelas cinzas do tempo, conquiste as alturas e torne a brilhar como o Cruzeiro do Sul, cantado como o lunar de Sepé nos céus do Rio Grande e que causou a estupefação da Europa, 250 anos atrás?
* Irmão Antonio Cechin é professor e assessor dos movimentos de catadores do Rio Grande do Sul., http://fepoliticaetrabalho.blogspot.com.br/2015/09/sao-sepe-tiaraju-utopia-e-profecia.html
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